A rotina não é fácil, mas o semblante não esboça cansaço. Todos os dias, quando o sol ainda está nascendo, já está de pé a juíza Leidejane Gomes Chieza da Silva. E é na casa sem ostentações, em Itaperuna, que vive a Jane, apelido dado pelo companheiro, Marcos Antônio. Ele sabe: da porta pra fora, é mais conhecido como o marido da juíza. Quem disse que ele se importa? “Dá é orgulho”, alegra-se, entre um gole e outro da laranjada e uma mordida no pão com manteiga, servido às pressas para dar tempo de alimentar os cachorros, levar os filhos ao colégio e seguir rumo as três cidades onde a magistrada trabalha – Natividade, Varre-Sai e Campos dos Goytacazes. É no corrido café da manhã que os dois voltam ao passado e lembram dos longos caminhos percorridos por uma juíza que, em outros tempos, nem pensava em usar toga.
Quando jovem, Leidejane jamais tinha imaginado trabalhar num tribunal. Nos planos daquela moradora de Nilópolis, na Baixada, o jaleco branco seria seu uniforme de trabalho, não a toga. Chegou a atuar numa clínica médica, mas não conseguira cursar Enfermagem porque a renda obtida com emprego e os bicos não eram suficientes para bancar a faculdade. Só que foi num desses extras, no sindicato da polícia, que Leidejane descobriu sua vocação e conseguiu cursar Direito.
Já na época de graduação, Leidejane viu no concurso para o Tribunal de Justiça do Rio a chance da estabilidade para ajudar a família e a oportunidade de estar mais perto da nova paixão: processos, sentenças. Justiça. Foi aprovada como técnica judiciária em 1994 e rapidamente galgou funções importantes. “Naquele tempo, o TJ estava migrando seu sistema para o Carta Certa (um antigo editor de textos). Eu era a única que sabia lidar com a ferramenta”, orgulha-se. Foi então que ela conheceu aquele que seria sua inspiração. Em Macaé, no Norte do estado, tornou-se secretária do então juiz e hoje desembargador Luiz Roberto Ayoub. Foram 12 anos de uma relação não apenas profissional, mas de mestre e aprendiz.
“Ele foi fundamental pra mim. Foi minha inspiração, foi quem me despertou o desejo da magistratura”, emociona-se. Foi também o magistrado um de seus maiores incentivadores, ainda que na época encontrasse resistência dos colegas e de outros juízes.
“Você não vai passar, precisa estudar muito. Você não tem ideia do quanto é difícil. Eram frases que eu ouvia muito, mas todas elas acabaram me servindo como alavanca para seguir em frente”.
Mal Leidejane sabia que o seguir em frente levaria tempo. Uma década. Numa das tentativas, o golpe mais sofrido. Depois de passar por todas as etapas do concurso para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, teve de ouvir do avaliador uma espécie de condenação sumária. O maior presente que carregava – a gravidez do filho do meio, Samuel – se tornou o entrave para que a servidora virasse doutora.
“Se você passar, a gravidez vai atrapalhar a escola”, sentenciou o avaliador. Leidejane lembra do momento com a garganta presa, as lágrimas represadas. Não dormiu naquela noite. Ao lado do marido, porém, não desistiu. E a insistência, com novas tentativas, fez com que a magistratura fluminense diplomasse, em 2006, sua mais nova juíza. Foi mais uma noite sem dormir. Desta vez, pela mais profunda alegria.
E como foi deixar de ser a serventuária e se tornar magistrada? Duas palavras comuns no meio jurídico, dois universos bem diferentes na prática. “Claro, para mim era estranho assinar um processo. Estava acostumada a carregá-lo. Depois foi ficando bem mais fácil porque eu tinha conhecimento do outro lado, do lado do servidor”, afirma.
A rotina de Leidejane é de seguir longos caminhos. Quase todos os dias são mais de 60 quilômetros para trabalhar no Fórum de Natividade, isso quando não precisa ir e voltar de Varre-Sai (100 quilômetros) para atuar no ônibus da Justiça Itinerante ou ainda presidir os júris populares de Campos dos Goytacazes (212 quilômetros, ida e volta). Sem falar nas reuniões em escolas das pequenas cidades para explicar como funciona a justiça, casamentos comunitários celebrados, reuniões no 10º Núcleo Regional em Itaperuna (onde é dirigente). Sempre lidando com todo o tipo de processo: criminais, cíveis, dos juizados, família, dívida ativa, administrativo.
Em geral, um juiz tem como planos se tornar desembargador. Não é, por enquanto, a meta de Leidjeane. Enquanto a maioria começa numa vara do interior e singra novas entrâncias, a juíza não pensa em deixar a titularidade da Comarca de Natividade/Varre-Sai, função que ocupa há quatro anos. “Aqui tenho qualidade de vida. Eu posso sair de casa com tranquilidade, ir à feira, ao supermercado. Meus filhos vivem em paz. Alguns colegas falam que eu devo ter ambições na carreira. Minha ambição é esta”, diz, temperando com detalhes que revelam os bons momentos. “Em Varre-Sai tenho o melhor almoço da região, com comida à lenha; aqui na região o café é conhecido e muito bom”, derrete-se. A única coisa que a faz cerrar a sobrancelha, mas seguir em frente, é bajulação de político. “Hoje eles me conhecem e me respeitam”.
Do alto dos seus 1,75m, a juíza parece crescer ainda mais quando fala da paixão pela magistratura. A atuação do magistrado mudou muito nos últimos anos, segundo ela. Palavras como gestão, organização, participação estão mais presentes no vocabulário cotidiano de quem julga.
Uma das provas – não processuais, mas de envolvimento com a cidade – foi uma reunião que presidiu com donos de bares e restaurantes da região . Não eram muitos (as duas cidades não têm mais que 20 mil habitantes), mas a pequena sala do júri, usada como local de reunião, ficou lotada. E tensa em alguns momentos.
“Quero avisar a todos que está proibida a venda de bebidas alcoólicas para menores. Temos que seguir a lei. Vender a bebida para maiores que irão repassar aos jovens também está proibido e vocês devem ficar de olho”, afirma com a disciplina de quem redigia uma sentença. A cada pergunta feita por um microempresário, uma resposta precisa.
“Por que eu tenho que cuidar dos filhos dos outros se eu não consigo nem olhar para os meus?”, cochichava um dono de bar com a concorrente que, naquele momento, deixara a competição de lado e se tornara uma espécie de cúmplice. Mas os lamentos da dupla não surtiram efeito. Além da restrição à venda de álcool, ficou determinado que menores não poderiam circular pelas ruas da cidade sozinhos ou em grupos após a meia-noite, somente com os responsáveis. Tem dado certo.
A magistratura, para Leidejane, não é um dom, mas uma espécie de ministério.
“O dom é algo que você recebe de presente. O ministério é construído e não depende de você. Eu sempre acordo pensando que não sou alguém perfeito e que eu preciso dar o meu melhor para fazer da melhor forma”, diz.
60, 100, 212 quilômetros rodados por dia. Muito? Sim. Mas o que são os longos caminhos percorridos quando um sonho pode determinar o que você é e uma atitude pode confirmar o que se conquista? Leidejane segue na busca dessas respostas.
Da redação da Rádio Natividade – Reportagem: Felipe Barreto – Fotos : Brunno Dantas